26/06/2009
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Uso de drogas entre crianças e adolescentes em situação de
O consumo de drogas está inserido no cotidiano de grande parte de crianças e adolescentes que vivem em situação de rua. A busca de viver momentos mágicos e de aliviar o desconforto, bem como a distância da cidadania em sua plenitude, são alguns dos aspectos que envolvem o elevado consumo de drogas nessa população. Essa realidade vem sendo observada em diferentes países, em todos os Continentes.
No Brasil, nas décadas de 80 e 90, foram realizados pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas - Cebrid quatro levantamentos entre jovens em situação de rua, envolvendo seis capitais brasileiras. Foi no ano de 2003 que, em parceria com a Senad e com apoio financeiro da Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas - Cicad, o estudo ganhou proporção nacional, englobando todas as 27 capitais brasileiras. No segundo semestre de 2003, foram entrevistados 2.807 jovens entre 10 a 18 anos das 27 capitais, que estavam recebendo assistência de 91 instituições mapeadas no período pesquisado. As entrevistas foram conduzidas individualmente, tendo como referência um questionário da Organização Mundial da Saúde - OMS adaptado para a nossa realidade.
Entre os jovens entrevistados foram observadas diferenças de gênero (75,5% do sexo masculino e 24,5% do feminino), idade (52,2% entre 10-14 anos e 47,5% entre 15-18 anos), situação escolar (41,7% havia parado de estudar e 2,5% nunca havia estudado), tempo em situação de rua (69,5% estava em situação de rua há mais de um ano), vínculo familiar (68,8% relatou estar morando com família e 31,2% relatou não estar). Os principais motivos atribuídos para a situação de rua foram: busca de brincadeira/diversão (58,9%), busca de sustento (37,7%) e relações familiares ruins (26,6%).
O rompimento do vínculo familiar foi o fator que apresentou maior associação com o uso diário (20 ou mais dias no mês que antecedeu a pesquisa) de drogas. Entre os jovens que, apesar de passar grande parte do tempo nas ruas, estavam morando com suas famílias, o uso diário de drogas (inclusive álcool e tabaco) foi mencionado por 19,7%. Em contrapartida, esse índice foi de 72,5% para aqueles que haviam rompido o vínculo familiar. Esses dados reforçam o importante papel da família como fator de proteção ao uso abusivo de drogas, bem como apontam a relevância do trabalho preventivo junto às famílias.
As drogas consumidas em maior intensidade (uso diário) foram o tabaco, os solventes e a maconha. O consumo diário de tabaco foi mencionado por 29,5% dos jovens, solventes por 16,3% e maconha por 11,2%. Esse perfil foi relativamente semelhante entre as capitais, exceto em relação ao tipo de solvente predominante (variando entre thinner, cola, loló, entre outros). Para as bebidas alcoólicas, o consumo diário foi mencionado por 3,0%, mas 43% dos jovens haviam consumido no mês (ao menos uma vez no mês que antecedeu a pesquisa) com intensidade variando predominantemente entre 1 a 19 dias/mês. O uso no mês de derivados da cocaína foi mencionado por 12,6%, mas em frequências variadas (2,4% com uso diário).
As capitais diferiram em relação ao derivado predominante como, por exemplo, o crack em São Paulo e em Recife, a merla em Brasília e em Goiânia, e o cloridrato (pó aspirado) no Rio de Janeiro. O consumo de medicamento psicotrópicos (como Rohypnol®, Artane® e Benflogin®) foi mencionado principalmente na Região Nordeste. Embora na média brasileira, o uso no mês tenha sido citado por 5% dos jovens, atingiu, por exemplo 31,3% em Recife.
A comparação dos dados de 2003 com os levantamentos anteriores (1987, 1989, 1993, 1997) aponta poucas mudanças no panorama geral de consumo. Essas poucas mudanças foram predominantemente em relação ao tipo de droga usada. Por exemplo, o consumo de crack nas capitais do Nordeste, que era pequeno até a década de 90, ganhou relevância em 2003. Em São Paulo, o consumo de cola (alto na década de 80), que havia sido substituído pelo esmalte na década de 90, volta a ganhar destaque no levantamento de 2003. Essas constatações sugerem que as políticas adotadas nas décadas anteriores, predominantemente de enfoque repressivo e de controle da disponibilidade de drogas, não tiveram a eficácia esperada.
Além disso, no levantamento de 2003 foram observadas negligências sérias de várias questões de saúde e cidadania. Por exemplo, embora 44,3% dos entrevistados tenham relatado o desejo de parar ou reduzir o consumo de drogas, apenas 0,7% procuraram ajuda em postos de saúde ou hospitais, mostrando a dificuldade de acesso ao sistema de saúde. As principais referências mencionadas foram as instituições que atendem diretamente a essa população. No entanto, a fragilidade da rede de assistência é evidente. Das 70 instituições mapeadas nas seis capitais pesquisadas em 1997, apenas 11 permaneciam atuantes em 2003.
Os resultados do levantamento confirmam o elevado consumo de drogas e vários outros comportamentos de risco a saúde. No entanto, esse panorama vem acompanhado de uma série de negligências sociais. A ilegalidade das drogas usadas perde o sentido quando considerados a ilegalidade maior que é a omissão social que abre espaço para a situação de ruas de crianças e adolescentes, realidade constatada em todas as 27 capitais brasileiras.
A nossa responsabilidade não é apenas de conhecer e aceitar essa situação, mas principalmente pelos processos de mudança que podemos começar a construir. Esperamos que o levantamento possa contribuir com subsídios para esse processo de mudança.
*Ana Regina Noto é Psicóloga, Mestre em Psicobiologia Doutora em Ciências; Professora afiliada e Orientadora de Pós-graduação do Departamento de Psicobiologia da Escola Paulista de Medicina - Unifesp e Pesquisadora do Cebrid - Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas.