19/06/2008

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A esquerda e o governo Lula - José Genoino

John Kenneth Galbraith defende que "na sociedade justa, ninguém pode ser deixado de fora sem renda – ser condenado à inanição, à falta de teto, de assistência médica ou a privações semelhantes. Isso a economia e a sociedade politicamente organizada, justas e afluentes, não podem permitir. (...) A ninguém, por acidente de nascimento ou por circunstância econômica, podem ser negadas essas coisas; se não puderem ser supridas pelos pais ou pela família, a sociedade deverá proporcionar formas eficazes de cuidado e orientação". Se Bobbio fundamenta e redefine as distinções entre esquerda e direita tendo como parâmetro a concepção de igualdade, é a simplicidade da fórmula de Galbraith que nos orienta no cotidiano da disputa política. Uma noção complementando a outra, cuja síntese dá o sentido contemporâneo do projeto político de esquerda e re-atualiza a nossa utopia.

Podemos dizer, sem hesitar, que o governo Lula se sustenta sobre tal idéia. É nítido, até para a oposição, que toda ação, todo projeto e o conjunto de programas implantados por nosso governo buscam diminuir a desigualdade e a injustiça. O governo tem uma política social clara cuja inflexão é conceber políticas públicas para acabar com a exclusão. É isso que está no cerne do esforço para elevar o poder de compra do salário mínimo.

Da mesma forma, o Bolsa Família foi concebido não como caridade ou como um programa da assistência, mas fundamentalmente como um programa redistribuidor de renda, assim como o Luz para Todos. O Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) e o ProUni (Programa Universidade Para Todos) são programas cujo esboço também se originou na idéia de diminuir desigualdades.

E, como foi revelado durante o debate para a aprovação da CPMF no ano passado, nunca a União investiu tanto em Saúde, Educação, Saneamento e Moradia. O sucesso desses programas é reconhecido pelas principais instituições e organismos econômicos do mundo e, a cada pesquisa divulgada, fica evidente a mudança dos padrões sociais do Brasil. O aumento expressivo do número de empregos com carteira assinada e a ascensão de vastos setores para a classe C são os exemplos mais recentes, dentre vários que sinalizam esta transformação.

Por outro lado, é necessário levar em conta que esses impressionantes avanços sociais foram obtidos sob os limites de uma estrutura institucional de ordem jurídico-política injusta. Já debatemos, em outros momentos, a necessidade de reformas profundas na institucionalidade do País. No entanto, para além das limitações impostas pela realidade exclusivamente brasileira, também é preciso reconhecer que, se o Brasil avançou socialmente, isso aconteceu sob uma ordem mundial também injusta. O neoliberalismo ainda é hegemônico e as regras e os procedimentos são próprios de uma dominação capitalista-financeira. É uma determinação objetiva o ato de governar buscando a justiça numa ordem fundada na injustiça, realizando mudanças processuais.

Além disso, nosso governo desobstruiu temas e produziu debates e políticas em relação aos direitos que estavam interditados há séculos. A criação de secretarias – com peso político e orçamento – para produzir propostas específicas para mulheres, negros e jovens e o compromisso da transversalidade é o lado institucional de uma concepção avançada sobre os direitos. A política de cotas, o reconhecimento das comunidades quilombolas, o debate atual sobre a demarcação das terras indígenas, o Plano Nacional de Políticas para os GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e transexuais), este um evento inédito no mundo, a compreensão do papel da Amazônia, a percepção do Brasil como um país multicultural e multiracial, a valorização da luta contra a ditadura e a recuperação desta memória, fazem parte do ideário da esquerda.

Neste quadro, a imposição de uma agenda social, a inversão das prioridades das políticas públicas no Brasil e a disposição para enfrentar o conservadorismo são mais do que indícios; é um balizamento acerca do caráter de esquerda do governo Lula.

Outra evidência da análise dos projetos e programas implantados nestes últimos seis anos é o antagonismo entre o governo FHC e o governo Lula. O contraste quase polar não está apenas na visão de cada um sobre o papel das políticas públicas. Fundamentalmente, está sintetizado na concepção diametralmente oposta do papel do Estado no desenvolvimento e sua relação com a sociedade. O governo Lula não só estancou o processo de privatizações como revisou a função das estatais, revitalizando o papel estratégico dessas empresas. Prova disto é o posto inédito que a Petrobras ocupa no mundo, cuja atuação determinou uma soberania energética vital na disputa global contemporânea, e a atuação do BNB na mudança radical das condições sociais e econômicas do Nordeste brasileiro.

No entanto, é no PAC que se explicita uma concepção de Estado antineoliberal. O eixo do Programa de Aceleração do Crescimento é o Estado induzindo o desenvolvimento. Seu objetivo essencial não é resolver questões de infra-estrutura e tornar o Brasil um país atrativo para o "mercado". É muito mais do que isso. É um projeto cuja origem é o compromisso de tornar o Brasil um País mais justo, democratizando o investimento do Estado, induzindo as economias regionais, fomentando e subsidiando a incorporação de novos padrões sociais, integrando-o culturalmente. O planejamento macroeconômico do governo Lula é balisado pelo propósito de tornar a sociedade mais justa, tendo como base o desenvolvimento econômico sustentável – fiscal, social e ambientalmente.

Aqui, da mesma forma, a correlação de forças impõe limites. A hegemonia neoliberal no mundo, evidentemente, é refletida internamente. A atual ordem econômica vigente nos condiciona e nos constrange. A política de juros e a manutenção do superávit devem ser entendidas nesta dimensão. Essas não fazem parte do núcleo do programa; são, antes de tudo, condicionantes objetivos do sistema dominante. No entanto, é inquestionável que o papel que o nosso governo destina ao Estado, está indisfarçadamente ancorado numa concepção de esquerda.

O terceiro aspecto é a nova condução que nosso governo está dando à questão internacional, de forma a reposicionar o Brasil em um outro patamar no mundo. Após seis anos, pode-se dizer que estamos numa situação muito mais favorável e nossa relação com os outros países se dá em outro patamar. Ao priorizarmos o eixo Sul/Sul e a integração regional, alteramos substancialmente o conteúdo da política externa brasileira. A subserviência deu lugar a uma ação ativa de disputa, onde o que está em jogo, além de mercados e produtos, são valores.

Se a balança comercial e as questões relacionadas à defesa são dimensões importantes da política externa do governo Lula, essas não estão acima do nosso objetivo de tornar o mundo mais justo e humano. A solidariedade, a democracia e a paz não são elementos derivados. São, antes de tudo, substâncias essenciais que determinam o sentido das nossas relações internacionais. Não foi à toa que em um dos primeiros eventos internacionais dos quais participou, Lula se destacou por apresentar a proposta de criação de um fundo mundial de combate à fome e à pobreza, iniciativa que até hoje é referência mundial. Além disso, nosso governo está construindo políticas para situar o Brasil favoravelmente em questões estratégicas, tais como: matriz energética, recursos hídricos, produção de alimentos e meio-ambiente.

No entanto, a arena internacional também não nos é favorável. O debate envolvendo os biocombustíveis e o etanol, em particular, revela apenas a superfície de uma disputa estratégica, que no fundo são visões distintas sobre o futuro do planeta e das relações humanas que se enfrentam. Mas, não restam dúvidas de que a política externa do governo Lula assenta-se nos pressupostos de uma visão de esquerda.

Como afirmei no debate mencionado no primeiro artigo, "estamos realizando um programa avançado, considerando que estamos agindo dentro da ordem, sem rupturas. Nunca o Brasil, conseguiu, a um só tempo, crescimento com diminuição da pobreza e soberania nas relações internacionais, democracia e recomposição do papel público do Estado, como promotor da cidadania e do crescimento". E se levarmos em conta a crise de perspectivas e de valores que a humanidade enfrenta, os impasses e tragédias gerados pelo neoliberalismo e a desesperança ideológica que está se propagando no mundo, é fácil perceber que o que estamos realizando é, historicamente, decisivo e basilar. Hoje podemos dizer que os brasileiros estão menos desiguais e que o Brasil, após o governo Lula, estará bem mais próximo do nosso ideal de sociedade justa.

José Genoino - Deputado Federal  (PT-SP)