24/11/2004

Imprimir notícia

Compartilhe esta postagem:


Celso Furtado e a economia como invenção

Agora, essa fantasia estava desfeita, desmoronara como uma estrela que se estilhaça. Era como se uma enxurrada tudo houvesse arrastado.<br /> <br /> Subitamente, deparei à direita do avião o perfil altaneiro dos picos gelados dos Andes. Deixei-me levar pelo deslumbramento. Eram vastos horizontes do mundo com seu sedutor canto de sereias. Senti ligeiro calafrio, como se meu adormecido espírito de cavaleiro andante fizesse sinais de despertar” (Fantasia Desfeita, Celso Furtado, pp.305-305, Paz e Terra).<br /> <br /> Há momentos em que a morte parece transfigurar a vida, mas, outros, em que a vida a supera, revelando-se por meio dela, como a demonstrar a natureza imperecível daquilo que é essencial, não-transitório, repositório de verdades e de expansões civilizatórias duradouras. <br /> <br /> Especialmente quando a vida se manifesta plenamente, aí a morte não é corte abrupto - interrupção sem sentido de uma vida ainda em potência, sem efetivação -mas coroamento de uma vida coerente, dotada de significado, de intensidade reflexiva e criadora, e, que, quando chega, transubstancia-se em reconhecimento coletivo, adquirindo permanência, eternidade, através dos outros, da cidadania florescida objetivada no Estado. Pois, somente a vida que é vivida com os outros, é de fato vida plena, dotada de intrínseca eticidade, permeado por valores e identidades autênticos.<br /> <br /> É o caso da vida e da morte de grandes homens, capazes que são de transcender o âmbito de suas existências privadas, particularistas, voltando o seu olhar para além de si, realizando assim, sínteses universais, ao captar a alma de um povo e de suas expansões culturais e identidárias. Grandes homens, que apesar de escassos, e talvez, por isso mesmo, sejam imprescindíveis, posto que, sem eles se mediocrizam os tempos e se abastardam as consciências. Notadamente, quando se vive em um meio subdesenvolvido, ainda carente do acesso aos mais elementares direitos fundamentais, como é o caso do Brasil, onde os intelectuais devem cumprir um papel crítico, crucial para a transformação e modernização das suas sociedades, democratizando saber e poder. <br /> <br /> Neste sentido, nenhuma trajetória é mais paradigmática, mais exemplar como modelo de intelectual ético, visceralmente comprometido com seu povo do que Celso Furtado, daí o significado de sua perda, da morte recente deste grande brasileiro. Celso Furtado, que é sem dúvida - consensualmente reconhecido – como um tradutor insigne de nossa história, um intérprete magistral de nossa cultura, em seus mais variados matizes e temperamentos, ao mesmo tempo que um inquieto personagem de nossa injusta realidade brasileira. <br /> <br /> Um pensador que foi capaz de conciliar a profundidade analítica, apoiada em sólidos conhecimentos teóricos e aportes doutrinários, com a fecundidade de uma ação não menos criativa, que se espraiava por uma infinidade de produções intelectuais e de ações institucionais sem ímpar em nossa história. Sem nunca se refugiar na sensaboria de dogmatismos fáceis, nem muito menos em um pragmatismo oportunista, que se concilia com as desigualdades da ordem social positivada, infelizmente tão comum por estas plagas tropicais. <br /> <br /> Celso Furtado, ao contrário, pautou sua obra reflexiva na aposta utópica de que é possível se construir uma nação brasileira democrática, socialmente justa e culturalmente emancipada, contrapondo-se as inúmeras tentativas de aviltamento colonial de nosso país. <br /> <br /> Trajetória altiva de Celso Furtado em que ocupou papéis e funções diversificadas, no Brasil e fora dele, sempre no intuito de pensar criticamente a realidade dos países em desenvolvimento, em particular da América Latina, procurando fugir de nosso “destino” trágico, a pobreza e a indigência cultural e institucional, que alguns imaginam a que estaríamos sempre atavicamente aferrados. <br /> <br /> Basta que se examine sua formação acadêmica brilhante, forjada em universidades brasileiras e estrangeiras, culminada com seu doutorado em Paris, mas que nunca afastou-se da problemática brasileira e de seus dilemas histórico-culturais (sua tese reportou-se à economia colonial brasileira), até as suas prolíficas ações prático-institucionais à frente da CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina – como Diretor da Divisão de Desenvolvimento, ou dos cargos que ocupou em sua trajetória de homem público (Diretor do BNDE, Ministro do Planejamento no Governo João Goulart, Ministro da Cultura no Governo Sarney, Embaixador do Brasil junto a Comunidade Européia, entre outros).<br /> <br /> Como foi o caso de sua atuação no delineamento do Plano de Metas de Juscelino Kubischeck, ainda quando se encontrava na CEPAL, sendo um dos grandes responsáveis pela racionalização das atividades de planejamento e intervenção do Estado na economia, que impulsionaram um amplo período de crescimento virtuoso do Brasil nos anos 50. Ou então, quando auxiliou países do Terceiro Mundo na detecção de entraves estruturais para seu desenvolvimento, envidando esforços teóricos e soluções concretas inovadoras.<br /> <br /> Ou mesmo, e principalmente, em sua atuação crucial no estabelecimento dos marcos de uma reflexão ampla sobre o Nordeste, atentando para questão do desenvolvimento regional, talvez, sua contribuição mais importante do ponto de vista institucional para consecução de um Estado Democrático no Brasil. Problema regional que historicamente tencionou a formação e o equilíbrio de nosso sistema federativo, dado a diversidade cultural, econômica e social da nacionalidade brasileira. <br /> <br /> Pois, foi Celso Furtado, o primeiro pensador a tratar de maneira mais detida, a necessidade de se modificar os termos de nosso federalismo, redefinindo as relações entre os entes federados e as políticas econômicas, ao invés de tratar o Nordeste e as demais regiões marginalizadas como objeto de comiseração da União ou do governo central. Pioneirismo na colocação do problema do Nordeste, que também se condensou na idéia de delimitar uma instituição inovadora no encetamento de um processo de desenvolvimento do Nordeste, que foi a SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste), de que foi seu primeiro Superintendente. <br /> <br /> SUDENE que nos projetos de Celso Furtado se constituía como instância político-decisória dos Estados do Nordeste, plantando assim, as sementes de um futuro federalismo regional, atualmente proposto por inúmeros juristas de nosso tempo, como Paulo Bonavides. Apesar dos infortúnios da implementação da SUDENE após o Golpe de 64, quando se submeteu o órgão aos caprichos viciados e viciosos das oligarquias nordestinas, que dela se aproveitaram para captar privilégios fiscais, auferindo lucros e dividendos, em favor dos velhos e arcaicos estamentos patrimonialistas.<br /> <br /> Ademais, se deve salientar também, a compreensão profunda que Celso Furtado possuía do problema do desenvolvimento, ao atentar para a necessária mediação cultural de seus aspectos tecnológicos, dado que para o grande pensador paraibano, o Brasil e o Nordeste, bem como, o conjunto dos países subdesenvolvidos, não deve cair na tentação de copiar receitas alheias, prontas, incorporando técnicas, concepções e instrumentos inadequados a nossa realidade. <br /> <br /> Afinal, o desenvolvimento não é somente uma questão estritamente econômica, mas, fundamentalmente, uma dimensão societária, pois, relações econômicas nada mais são do que relações de sentido construídas por pessoas, seres eminentemente culturais, a partir de sua inserção em ambiências específicas, que terminam por resultar na troca de bens e na produção de riquezas. <br /> <br /> Transformar a economia –como querem os neoliberais e espécies congêneres - em mera receita tecnocrática, asséptica perante os homens concretos e suas vontades, submetida despoticamente aos caprichos anárquicos do mercado, era algo prontamente repelido por Celso Furtado. Daí a sua compreensão de que a economia só podia ser compreendia em diálogo freqüente com a história e com as demais ciências sociais, inclusive da literatura, numa clara defesa da supremacia da interdisciplinaridade e da ação criativa do homem, no processo de produção do conhecimento. <br /> <br /> Aliás, pode-se afirmar sem temor, que talvez seja esta, a maior virtude Celso Furtado, o de ser um pensador original, sem peias, sem viseiras ou maneirismos, que o impedissem de dar livre curso a sua imaginação criativa no âmbito de sua reflexão admirável sobre a sociedade e a economia brasileiras. <br /> <br /> Um pensador que como já disse, ocupou diversas funções institucionais, participando de inúmeras missões técnicas e científicas, mas que nunca perdeu o sentido da ligação orgânica de sua obra com as demandas, anseios e angústias mais profundas de sua gente. Transformando assim, a economia em invenção perene, a serviço dos homens e de seu tempo, distintamente da maior parte de nossa intelectualidade, dotada de mentalidade colonial e divorciada da realidade mais profunda do seu povo.<br /> <br /> Daí a importância da homenagem a figura de Celso Furtado que hoje referencio, como símbolo de tenacidade humanista, de vontade audaz e criadora, que não se curva diante das fatalidades do mundo, nem das imposições da fortuna, mas que feito Dom Quixote, enfrenta-as com destemor, inteligência e evocadora crença de que um outro mundo e um outro Brasil é possível! Um Brasil, mais justo e fraterno, que, infelizmente, Celso Furtado não pode assistir realizado, mas haveremos de construir, com a argamassa de seus sonhos e de suas idéias eternas.<br /> <br /> <b>Artigo escrito quando José Guimarães exercia o mandato de Deputado Estadual (PT-CE) e </b> Líder do PT na Assembléia Legislativa do Ceará